O Bitcoin é uma criptomoeda, um tipo de dinheiro digital que opera sem a necessidade de bancos ou governos. Mas à medida que sua adoção cresce, algo curioso emerge: para além da tecnologia, o que sustenta o Bitcoin é a fé. Fé na ideia, no código, na comunidade. Fé em um sistema que promete liberdade em meio ao colapso da confiança nas instituições tradicionais. Este artigo investiga como uma criação tecnológica se tornou um objeto quase religioso em pleno século XXI.

A Origem: 2008 e o Colapso da Confiança
Em 2008, o mundo enfrentava uma das piores crises financeiras desde 1929. Grandes bancos entravam em colapso, governos injetavam trilhões para salvar instituições e o sistema financeiro mostrava sua fragilidade. Foi nesse contexto que surgiu um documento online de nove páginas: o white paper do Bitcoin, intitulado “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”. O autor? Um nome desconhecido: Satoshi Nakamoto.
O white paper propôs um sistema de pagamentos eletrônicos sem a necessidade de intermediários, baseado em uma rede descentralizada e em prova de trabalho (proof-of-work). O objetivo era criar uma forma de dinheiro digital que não dependesse da confiança em bancos, governos ou qualquer autoridade central. Cada participante da rede seria ao mesmo tempo usuário e validador do sistema.
O Código Como Evangelho
A primeira transação de Bitcoin ocorreu em janeiro de 2009. Satoshi minerou o chamado “bloco gênese“, o primeiro bloco da blockchain do Bitcoin. Nele, deixou uma mensagem: “The Times 03/Jan/2009 Chancellor on brink of second bailout for banks”. Era uma crítica direta ao sistema financeiro.
Desde então, o código do Bitcoin passou a ser considerado quase sagrado por seus seguidores. O próprio Nakamoto desapareceu em 2011, consolidando a aura mística ao redor de sua figura. Ele não pediu crédito, não buscou fama. Sumiu, deixando apenas o código aberto e a comunidade.
Esse código, acessível a todos, passou a ser interpretado, seguido, atualizado com extremo cuidado. Como um texto sagrado, qualquer alteração suscita debates quase teológicos. Surgiram frases-mantra como “Not your keys, not your coins”, em referência à importaância de controlar a própria chave privada.
Rituais, Liturgias e Tribos
Com o tempo, a comunidade que se formou em torno do Bitcoin começou a adotar comportamentos semelhantes aos de seitas e religiões. Eventos como o halving — que ocorre a cada 4 anos, reduzindo pela metade a recompensa dos mineradores — são celebrados como feriados sagrados. O halving é parte do código e simboliza escassez programada, uma referência ao ouro.
As conferências de Bitcoin se tornaram locais de pregação e catequese. Os maximalistas, grupo que defende a exclusividade do Bitcoin em relação a outras criptos, são os ortodoxos dessa religião. Consideram o Bitcoin como o único projeto legítimo e tratam altcoins como heresias.
Já os reformistas aceitam a diversidade de criptoativos e veem valor em outras blockchains. Também existem os apóstatas, aqueles que abandonaram as criptomoedas e retornaram ao sistema financeiro tradicional.

Tecnologia, Filosofia ou Crença?
Embora o Bitcoin seja sustentado por matemática e criptografia, é a narrativa que o torna poderoso. O sistema propõe uma visão de mundo onde a confiança é substituída por verificabilidade. Cada transação é registrada em uma blockchain imutável, auditada por todos.
Porém, o que sustenta seu valor não é apenas a tecnologia, mas a fé coletiva de que ele é valioso. Assim como o ouro tem valor porque todos concordam que tem, o Bitcoin também. Não possui lastro. Seu lastro é o consenso.
Para muitos, o Bitcoin é mais do que um ativo. É um manifesto. Representa a resistência ao controle estatal, a independência financeira, o sonho de um sistema sem censura. E como todo movimento com ideal, também atrai seguidores dispostos a defendê-lo com fervor.
O Preço da Fé
Como toda religião, o Bitcoin também exige sacrifícios. A alta volatilidade faz com que investidores percam grandes somas em quedas repentinas. Há os que entraram no auge e saíram na baixa, traumatizados. Há os que resistem, fiéis, mesmo com o mercado em queda.
Ataques de hackers, golpes e projetos fraudulentos também comprometem a segurança do ecossistema cripto. Ainda assim, para os fiéis, esses desafios apenas testam a convicção. O discurso permanece: “Bitcoin não falha, o ser humano é que falha”.
Uma Religião do Código?
A estrutura simbólica do Bitcoin se assemelha a uma religião:
- Profeta: Satoshi Nakamoto
- Evangelho: O white paper
- Rituais: Halving, hodl (manter moedas), mining
- Liturgia: Frases repetidas, dogmas sobre escassez e liberdade
- Templos: Conferências, podcasts, comunidades online
- Apóstolos: Desenvolvedores, influenciadores e primeiros investidores
- Hereges: Altcoiners, reguladores, governos
- Santos e mártires: Investidores que perderam tudo mas continuam crendo
A analogia pode parecer exagerada, mas é eficaz para compreender por que o Bitcoin sobrevive mesmo após tantas crises. Seu valor é sustentado por um pacto simbólico, por uma narrativa compartilhada que vai além da lógica de mercado.

Explicando os Termos
- White paper: Documento que explica de forma técnica e conceitual o funcionamento de um projeto.
- Blockchain: Banco de dados descentralizado onde as transações são registradas em blocos ligados entre si.
- Minerador: Participante da rede que usa poder computacional para validar transações e criar novos blocos.
- Halving: Redução pela metade da recompensa dos mineradores, que acontece a cada 210 mil blocos.
- Hodl: Termo derivado de “hold” (manter), simboliza a estratégia de não vender mesmo em quedas.
- Maximalista: Pessoa que defende o Bitcoin como única criptomoeda válida.
- Altcoin: Qualquer criptomoeda que não seja Bitcoin.
- Fiat: Moeda tradicional emitida por governos, como o real, dólar, euro.
Crítica Final
O Bitcoin é uma revolução digital, mas também uma construção simbólica. É um reflexo de nossa crise de confiança nas instituições, da sede por autonomia, da vontade de romper com sistemas percebidos como falhos. Mas como toda fé, pode se tornar cega.
É preciso separar o potencial real do Bitcoin da mística que o envolve. Tecnologia não é redentora. Código não é dogma. A liberdade prometida pode se transformar em novo dogmatismo. E o que hoje é resistência, amanhã pode ser ortodoxia.
Ainda assim, o Bitcoin revelou algo profundo: que o dinheiro é, no fim, uma narrativa. E que onde há narrativa, há crença. E onde há crença, há poder.
Por isso, o Bitcoin é mais do que código. É uma religião sem Deus, mas com muitos fiéis.
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