Por Metaverso da Cyberciência
Eles prometeram liberdade. Um sistema sem governos, sem bancos, sem intermediários. Um código inviolável, impessoal, capaz de operar acima de qualquer suspeita humana. Mas o que acontece quando esse mesmo código é reescrito? Quando a comunidade que pregava a imutabilidade da blockchain se vê obrigada a votar pela mudança de sua própria história?
O Ethereum nasceu em 2015 como uma promessa revolucionária. Enquanto o mundo enfrentava crises econômicas, instituições corroídas e a lenta agonia dos bancos centrais, um jovem canadense chamado Vitalik Buterin apresentava ao mundo uma nova proposta: uma plataforma onde contratos pudessem se autoexecutar, sem depender de juízes, leis humanas ou burocracia estatal.
Era o início dos chamados “smart contracts”. E, com eles, a narrativa de que o código seria a nova lei. Uma lei fria, precisa e incorruptível. A proposta parecia irrefutável: descentralizar tudo. Retirar o poder dos intermediários. Transferir a confiança das instituições humanas para a neutralidade da matemática.
Por um tempo, muitos acreditaram. Mas a crença na neutralidade do código colapsou no mesmo momento em que ele foi posto à prova.

Em junho de 2016, surgiu a The DAO – uma Organização Autônoma Descentralizada baseada na plataforma Ethereum. Em poucas semanas, investidores depositaram mais de 150 milhões de dólares, confiando na governança algorítmica daquele sistema. Mas o código da DAO continha uma brecha. E um atacante a explorou. O resultado: 60 milhões de dólares em Ether foram desviados.
A crise foi imediata. A comunidade que havia prometido não interferir no funcionamento do código se viu diante de um dilema moral e financeiro. E então, algo inédito aconteceu: o blockchain foi modificado. Um hard fork foi implementado para anular o ataque e restaurar os fundos.
Foi a primeira grande fratura ideológica do Ethereum. O sistema que dizia não precisar de governantes acabou governado. A fundação, os desenvolvedores centrais, os fóruns — todos participaram de uma decisão política. E quem se opôs a essa mudança seguiu em outra direção, fundando o Ethereum Classic.
O episódio revelou o que muitos não queriam admitir: mesmo na blockchain, há poder. Há centros de decisão. Há articulações e hierarquias. A descentralização, na prática, mostrou-se limitada. E, em muitos aspectos, ilusória.
Hoje, o Ethereum opera como uma infraestrutura global. Com bilhões em circulação, milhares de contratos e uma comunidade centralizada em torno de um ecossistema liderado por grandes validadores e pela própria Fundação Ethereum. O staking — processo de validação que deveria ser amplamente distribuído — é, em grande parte, dominado por grandes entidades. E as decisões mais relevantes continuam sendo tomadas em fóruns, votadas por vozes conhecidas, influentes.
A retórica da descentralização convive, de forma contraditória, com estruturas cada vez mais próximas de um Estado: há governança, há política, há disputas internas por direção ideológica e técnica. O código que deveria ser absoluto revelou-se maleável — e sensível à vontade de seus criadores.
Talvez a descentralização nunca tenha sido um destino, mas apenas um rótulo. Um argumento sedutor, que legitimou a criação de um novo centro, agora travestido de neutralidade tecnológica.
O Ethereum não aboliu o poder. Ele apenas o reconstruiu com nova roupagem: um código que obedece aos interesses daqueles que o mantêm.
No próximo episódio de Criptociência em 3 Atos, investigaremos por que o Bitcoin se parece mais com uma religião do que com uma moeda — e o que isso revela sobre nossa relação com a fé, o dinheiro e o futuro.